Sábado, 9 de Março de 2024



Elas saem na frente : conheça as mulheres que se destacam no automobilismo brasileiro

O gesto com a bandeira quadriculada que vemos no final das corridas tem a sua origem com as mulheres. Eram elas no século XIX quem agitavam grandes toalhas de mesa quadriculadas em corridas de cavalos nos Estados Unidos, para indicar que a comida estava pronta e servida, o que marcava o fim da corrida.


Em 1958, a italiana Maria Teresa de Fillipis conquistou uma importante e emblemática posição no automobilismo, até então dominado pelos homens. Foi a primeira mulher a pilotar um carro de Fórmula 1.


Hoje, no automobilismo, é notável o avanço que as mulheres vêm conquistando.


Apresentaremos aqui quatro delas que têm se destacado no Brasil:

Bia Figueiredo: O despertar para o esporte foi assistindo às corridas pela TV, mas a paixão aconteceu ao assistir ao vivo uma corrida de kart com o pai, aos cinco anos de idade. “A vontade veio de mim, tive sorte de os meus pais perceberem essa paixão”, diz Bia, que começou a correr de kart aos sete anos de idade.

Na época, a representatividade feminina era muito baixa, mas isso não fez Bia desistir. De espectadora das corridas da Indy na TV foi para o cockpit e se tornou a única mulher a vencer uma prova da Indy Lights, categoria de acesso à Fórmula Indy, em que correu de 2010 a 2012. Depois ela andou na Stock Car, em algumas provas do IMSA e em 2023 estreou na Copa Truck, em que corre nesta temporada.


Desde 2022, Bia é coordenadora do programa FIA Girls on Track no Brasil e representa o País na FIA Women, a Comissão de Mulheres no Automobilismo da FIA, na América do Sul. Criada pela FIA em 2008, a FIA Women foi presidida por Michèle Mouton, que desenhou os projetos FIA Girls on Track com o objetivo da inclusão feminina no esporte a motor por  meio de ações que aproximem meninas e mulheres do automobilismo.

“Quando fui convidada para coordenar o FIA Girls on Track no Brasil, eu chamei a Rachel Loh, da equipe Ipiranga Racing na Stock Car, que é a nossa maior engenheira de automobilismo de competição, e a Bruna Frazão, que já foi promotora de eventos e ama automobilismo, para fazer parte dessa comissão e organizarmos os projetos do FIA Girls on Track”, conta Bia.


A experiência com estudantes a levou a promover o estágio de mecânica e engenharia em grandes categorias, além de uma seletiva de kart. As ações nas mídias sociais alcançaram milhares de meninas e, em 2023, mais de 200 participaram das diversas experiências oferecidas pelo programa FIA Girls on Track.


Uma das ações será realizada no E-Prix de São Paulo, corrida da Fórmula E, no Sambódromo do Anhembi, em 15 e 16 de março, em que cerca de 120 estudantes, de 12 a 18 anos, terão aulas sobre temas como pneus, baterias e preparo físico, visitarão os boxes das equipes, e conversarão com mulheres que trabalham na categoria, em ações visando estimulá-las a vir a também trabalhar com esse esporte.


Em sua carreira no automobilismo, Bia enfrentou e superou dificuldades desde as corridas de kart. “Ninguém queria perder para uma menina. Então os meninos jogavam meio pesado comigo nas pistas. Mas, a partir do momento que eu consegui grandes resultados, ser mulher me ajudou também a ser destaque, a ganhar protagonismo e a ser reconhecida pelas marcas. E acabei tendo depois a oportunidade de chegar ao topo do automobilismo na Indy”, resume Bia Figueiredo, o principal nome feminino do automobilismo brasileiro.

Rachel Loh: Aos 17 anos, a facilidade com a matemática foi o fator decisivo para que ela escolhesse a engenharia e, das múltiplas especialidades nos vestibulares, foi aprovada em engenharia mecânica. Logo no primeiro semestre da faculdade, deparou-se com um universo completamente masculino.

“Achei que estava no lugar errado, só tinha homens!”, ela lembra. O desempenho ruim a levou a se afastar do curso. Mas, um ano depois, superando um quadro de depressão, retornou ao laboratório e encontrou 15 homens em volta de um protótipo de carrinho feito para o Baja-SAE Brasil. 


Foi convidada por eles para ser piloto de testes do protótipo. Logo de partida, com o seu peso, Rachel deixou o protótipo 20 kg mais leve, e acabou comandando a equipe. O ambientes de testes  a encantou e ali aconteceu o encontro com o esporte a motor. Ela percebeu que queria ser mais rápida e o espírito da competição começou a falar mais alto.


No programa Baja-SAE Brasil, que estimula estudantes de engenharia a aplicar na prática o que aprendem na teoria, Rachel foi a primeira mulher dentro de uma equipe estudantil e a primeira capitã de uma equipe. Exatamente há 20 anos, ela começou a abrir o caminho para outras mulheres.

Foram muitos os desafios e obstáculos superados. “Eu era a maluquinha que falava que ia ser engenheira automobilística”, ela lembra como era qualificada.


Natural de Petrópolis, no interior fluminense, Rachel ia ao Autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, para ver corridas. Por muito tempo, o caminho percorrido foi solitário. Não tinha com quem conversar, e todas as referências eram homens. Até que Bia Figueiredo se tornou referência para as mulheres no automobilismo e se tornou sua inspiração. Pesquisando, descobriu diversas mulheres que antecederam Bia no esporte a motor brasileiro, mas cujas lembranças e referências foram apagadas pelo tempo.


A oportunidade de trabalhar com Bia, mais tarde, quando ela foi correr com a Ipiranga Racing na Stock Car, em que Rachel estava, trouxe mais intimidade com o ambiente de trabalho, e afastou os medos. Por muito tempo ela se cobrou. “Achava que eu não poderia errar, porque se um homem chegasse e errasse, ele teria uma segunda chance, e eu não iria ter”, ela comenta.


Agora, Rachel, que é membro da comissão técnica do São Paulo E-Prix, corrida da Fórmula E na capital paulista, e membro da comissão organizadora do FIA Girls on Track no Brasil, comanda o projeto Imersão para Mulheres no Motorsport, ancorado na equipe AMattheis, que é a Ipiranga Racing em que trabalha na Stock Car. Em sua segunda edição em 2024, é um evento totalmente gratuito e online, com temas como engenharia e mecânica, e comunicação e marketing, entre outros, para dar base à ampliação da participação feminina no automobilismo brasileiro.

Erika Prado: É outra engenheira inspirada em Bia Figueiredo. Desde a infância admirava corridas e carros, mas o despertar para o esporte a motor foi em 2012, durante a etapa da Indy em São Paulo, ao ver o trabalho da equipe Penske e Bia no correndo no circuito do Anhembi.

Engenheira mecânica, ela se formou em 2018 e nesse ano criou uma comunidade para mulheres no automobilismo chamada Girls Like Racing. “Inicialmente, a intenção  era organizar um grupo de mulheres no whatsapp para combinar  de irem juntas assistir às corridas, mas a convivência com outras mulheres trouxe o propósito de tornar o ambiente do esporte a motor mais acolhedor para as mulheres”, resume Erika.

Paralelamente, em 2019, ela teve seu primeiro trabalho  em automobilismo, na Fórmula Vee, categoria que integra o Campeonato Paulista de Automobilismo, como analista de dados e de performance dos pilotos e dos carros em pista. Como engenheira de dados de performance, em 2022 migrou para a equipe Cavaleiro Sports na Fórmula 4 brasileira, em que ficou até 2023, e nesta temporada de 2024 estreia como engenheira de dados de performance da equipe TMG Racing na F4.

No decorrer desses anos, a comunidade ganhou a página @girlslikeracingbr

no Instagram, atualmente com quase nove mil seguidores, e acaba de lançar um perfil na plataforma Linkedin, para compartilhar suas ações, como levar garotas para conhecer os bastidores da Stock Car, entre outras, para divulgar os “bem-feitos” das mulheres no automobilismo. E para anunciar vagas de trabalho! Uma iniciativa inédita e prática.


“Temos que focar não nas conquistas das mulheres, mas na transformação social. Só vamos ter conquistado a igualdade quando nossa presença nas lideranças e em posições de destaque e protagonismo, mesmo em meios masculinos, for comum, e não uma realização”, Erika aponta com assertividade.


“Ver mais meninas virando pilotas me deixa muito feliz”, ela acrescenta. “Porque significa que entenderam a representatividade: se uma de nós está lá no automobilismo, eu também posso estar. Mas ainda estamos muito longe do ideal. Precisamos aumentar a presença de meninas na base para que elas comecem a aparecer nas categorias de ponta daqui a alguns anos”.


Obstáculos para superar ela também teve: “Foram inúmeros. Por eu ter começado recentemente no Motorsport, ainda é difícil ter boas oportunidades, que me remunerem igual a um homem, pois tenho menos experiência. E algumas pessoas veem a feminilidade como um problema de convivência em um ambiente majoritariamente masculino, como o automobilismo”.


Mas, fora isso, não foi nada além do que todas as mulheres estão acostumadas a enfrentar rotineiramente. “Estes dois problemas são diferentes do padrão, que são piadas machistas, falta de credibilidade por ser mulher, problemas com liderança, homens muito dificilmente aceitam lideranças femininas, e todos os outros que são comuns às mulheres em nossa sociedade”, conclui Erika.

Letícia Datena: O interesse por esportes e por carros teve início na infância, mas foi trabalhando como jornalista que aconteceu o encontro com o automobilismo. Os roncos dos motores despertaram a paixão quando, como repórter da Fox, cobriu o Rally Mobil, o maior campeonato de rally do Chile, há sete anos.

A mudança para Londres em 2019, para apresentar o WRC, o Campeonato Mundial de Rally da FIA, foi interrompida pela pandemia. Com as incertezas, preferiu ficar no Brasil, e trabalhou pela primeira vez no mercado de automobilismo local, para o canal Automais TV.

De Fernando Julianelli, CEO da Vicar, recebeu o desafio de produzir conteúdos das redes sociais e criar matérias para o YouTube na final da Stock Car de 2020. Esse trabalho realizado gerou convite para, a partir de 2021, ser o rosto da Stock Car,  apresentadora e repórter das transmissões oficiais da Stock Car, da Stock Series, da Fórmula 4 e da TCR Brasil, categorias da Vicar, e para participar da estruturação do novo departamento de criação de conteúdo da Vicar, do qual faz parte.

Sobre a crescente presença feminina no universo do esporte a motor, Letícia diz que “o ambiente do automobilismo é acolhedor, há respeito por parte dos homens, colegas de profissão e as situações envolvendo discriminação são

pontuais”. Ela avalia que há espaço para todos: “a mulher tem tanto potencial e direito ao protagonismo quanto o homem”. E observa que “não é porque nós somos poucas ainda no automobilismo que não vale a pena. Vale, sim! Você fazendo tudo corretamente e se empenhando, pode conquistar coisas maravilhosas e viver de automobilismo”.

Foram diversas as batalhas superadas nos sete anos da carreira com o esporte a motor, tanto por ser estrangeira, quando começou a cobrir rally no Chile, quanto por ser novata e ter que provar competência frequentemente. “Passava até oito horas por dia estudando a dinâmica e a mecânica dos carros, sempre buscando informação e conhecimento para entregar o melhor e com qualidade”, ela lembra.

Letícia, que começou a trabalhar aos 15 anos como modelo, e passou a atuar como jornalista em 2014, cobrindo a Copa do Mundo de Futebol, planeja conduzir sua carreira no esporte a motor. “A minha vontade é continuar no automobilismo e continuar conquistando cada vez mais coisas nesse meio, que é tão apaixonante. Eu me sinto muito orgulhosa de ser uma das poucas mulheres fazendo isso a nível mundial”, diz ela, em referência às três coberturas que fez do Dakar, o maior rally do mundo, em projetos completamente seus, sozinha, apenas com o um celular e poucos equipamentos.